Um desconhecido atravessou a avenida movimentada, em plena tarde de sexta feira, e entregou a encomenda para outro desconhecido, que esperava pacientemente na calçada do sentido oposto. Disfarçou, aproximou, passou a mala, deu meia volta e, novamente, cruzou a pista, retornando para o lado original em que estava. Sacou um celular do bolso e iniciou conversa com alguém.
No instante em que os corpos dos dois desconhecidos estiveram muito próximos um do outro, e em fração de segundos, cumpriram com suas obrigações, eu, o terceiro desconhecido, atleta-literato-voyeur, preso num veículo de transporte coletivo insuportavelmente quente, parado no engarrafamento, notei, percebi, pude observar, dei a sorte de captar, flagrar o instante preciso em que o ato camuflado daquelas figuras morenas era posto em execução. Eu não te conheço. Não diga uma palavra quando me ver. Não se dirija a mim. Entregando a bolsa, você cai fora. Não me olhe. Não puxe papo. Não seja legal comigo.
Caos, trânsito, policiais, vendedores de água de coco, cordões de prata à dez reais, anéis com inscrição de Jesus Cristo, fiscais de transportes ilegais (vários), shopping center, carro, ônibus, multidão, sinal vermelho. Velhas, crentes, crianças, guardas de trânsito, apitos, emos, roqueiros, skatistas, lojistas, marginais, crianças de rua, pastel do japonês, mães, viados no banheiro, postos de gasolina, estacionamento... e, em plena efervescência de um dia agitado, em questão de segundos, num horário acima de qualquer suspeita, traços riscados no ar, em forma de figuras humanas, foram flagrados por mim cumprindo um dever. Eram cinco horas da tarde, Um deles atravessou a avenida, entregou a mala sem fazer alarde, sem ser percebido pelos demais, e foi embora.
Durante o trajeto da volta para casa, a cabeça estava posta para fora da janela. Observava com ares de curiosidade o interior dos automóveis e o que poderia haver ali dentro que chamasse minha atenção: o comportamento do motorista, seus modos, como dirigia, se falava sozinho, se batucava com os polegares no volante, se ouvia música, se estava irritado. Tudo muito rápido. Eram flashes, imagens-relâmpago. Apenas uma vez na vida, depois nunca mais. Seria impossível estar ali novamente e ver os mesmos rostos, frisar as mesmas reações no mesmo lugar e no mesmo instante presente. Um séquito de veículos transitava pela avenida estreita, todos com pressa, um atrás do outro, tentando ultrapassadas impossíveis.
Com as pessoas que esbarramos na vida também é a mesma coisa. Dependendo do contato, superficial, intenso, pode durar um minuto, uma hora, um ano ou uma eternidade inteira, depois que se acaba, depois que passa, parece que nunca houve, nunca esteve, nunca viu. Sei e ao mesmo tempo não sei mais de sua vida, também não quero saber. Passou, como os carros e seus motoristas passaram por mim, fumando um cigarro, conversando ao celular ou dirigindo sem o cinto de segurança.
Na hora em que eu estava prestes à desembarcar, percebi que não havia espaço adequado para me locomover dentro do automóvel, visto que aquela zona de acesso entre as poltronas fora ocupada por pessoas irritantemente espaçosas. Uma criatura, disfarçada de serva de Deus, com um vestido roxo dos pés à cabeça, por exemplo, estava sentada ao meu lado, roçando aquela coxa gorda e suada na minha perna, como se a atmosfera sufocante daquela tarde já não fosse suficiente o bastante para evitar qualquer tipo de contato mais próximo. Eu estava com nojo dela e queria que ela morresse. Ou eu é que queria morrer por estar ali dentro passando por aquele sufoco. Ela teria que se levantar para dar passagem, senão eu passaria por cima dela, pouco me lixando para sua condição de evangélica pobre e mal amada, o que não deve deixar de ser verdade.
Quanto aos dois desconhecidos que mencionei no início do conto, não faço a menor ideia da continuação da história de suas vidas. Não me dei ao trabalho de soltar da Kombi para ir ao encalço deles. Teria que me dividir em quantos? Todavia, poderia inventar uma situação de morte. Foram atingidos por alguma tragédia de ordem natural. Decidi, então, transformá-los em criaturas dependentes do meu estado de humor para existirem. Eu tenho capacidade para isso... Mas não! Decidi manter-me fiel ao curso do tempo. Nada de invenções. Nada de final coeso. Não sei deles. Se foram. Cada um foi para o seu lado. E nunca mais eu voltarei a vê-los.