31 de jul. de 2010

Conto nº 9 - No sereno

- Fora abordado por um indivíduo negro, que segurava, na mão esquerda, uma garrafa d´agua mineral com alguma coisa que parecia ser uma substância alucinógena, ou talvez aquilo fosse cola de sapateiro.

- Me vê ai um cigarro!

- O sujeito viu que só havia um cigarro dentro da embalagem. Pensou antes: Que merda! - Toma ai! - Ofereceu ao indivíduo.

- Tem isqueiro?

- Perai

- O sujeito procurou em todos os bolsos da calça e só foi achá-lo no de trás. Deu-o na mão do indivíduo.

- O indivíduo acendeu o último cigarro do sujeito e colocou o isqueiro dentro do bolso de sua bermuda suja.

- O sujeito, vendo que estava a ponto de perder o objeto para o indivíduo, pediu que este lhe devolvesse.

- O indivíduo de pele magra ficou encarando-o por uns breves cinco segundos. Retirou do bolso de sua bermuda encardida uma caixa de fósforo e passou para as mãos do sujeito.

- O sujeito retrucou, dizendo que a caixa de fósforo não era dele. Ele queria de volta o isqueiro. Mas amansou sua voz. Replicou de uma maneira menos agressiva. Tentou dialogar com o indivíduo, como podemos dizer, de igual pra igual, como se o argumento do sujeito fosse sensibilizar, de certa maneira, o espírito do indivíduo, absorvido pela inalação da maldita quimica.

- O que que você tá falando?

- O sujeito deu as costas para o indivíduo mas fora interpelado pelo próprio. Agarrou-o pelo braço, sem que o outro oferecesse resistência. Entre outras coisas, passou pela cabeça do indivíduo que poderia agir de má fé com o sujeito. Ou que, talvez, o sujeito estivesse gostando da situação de confronto ali entre os dois.

- O indivíduo não gostava da forma como o sujeito olhava nem falava com ele. Perguntou se ele não tinha medo de perder a vida. Apalpou os bolsos da calça do sujeito. Pediu dinheiro e não queria gracinhas, porque ele estava com uma arma escondida dentro da sua bermuda velha. Não havia nada ali dentro.

- Fica parado aqui porque? Tá com vontade de pegar os viadinhos pra dar a bunda?

- Não tenho nada pra te dar não, acabei de sair de uma festa e estou a caminho de casa.

- O sujeito e o indivíduo ficaram se encarando.

- Sujeito: E essa garrafa ai?

- Indivíduo: O que é que tem ela?

- Sujeito: O que é isso ai?

- Indivíduo: Isso aqui? Nada não. Isso aqui não é nada não.

- Sujeito: E o isqueiro?

- O indivíduo sem camisa botou a mão no bolso e pegou a caixa de fósforo.

- O sujeito pegou a caixa de fósforo, guardou no bolso de sua calça e desapareceu numa rua deserta do Centro da cidade.

26 de jul. de 2010

Crônica - Aqueles filmes que ainda não assistimos, mas que iremos assistir em algum momento de nossa existência, que eu espero que seja longa

Talvez seja preguiça. As vezes eu demoro décadas para assistir aos filmes que estão na minha listagem (virtual) obrigatória e imprescindível de títulos recentes, ou não tão recentes assim, que considero como essenciais para minha formação intelectual e que não posso deixar de ver de jeito nenhum. O problema é que eu não tenho muito saco pra ficar apontando o que ou quando é que eu irei ver tal ou qual produção, aliás, deixo aqui bem claro que admiro aqueles que possuem paciência pra elaborar tabelas em computador, com o intuito de registrar o que fez, quando, onde, com quem e em quais circunstâncias, e por ai vai. Com relação à mim, eu deixo para o acaso. Na hora algum amigo, parente (coisa muito rara) ou afilhados de casamento vão me ligar e me propôr uma indecência estética. Mas sempre há aquela produção cinematográfica que a gente deixa escapar e que, por causa desse deslize terrível, vai virar o tema principal, o comentário do bar, de festa, de fila de boate (?) etc.

Uma vez, na Cobal do Humaitá, numa madurgada fria de sexta para sábado, saíndo de uma maratona teatral na UNIRIO, eu e meus amigos de graduação fomos nos encontrar com outros amigos que estavam à nossa espera. Entre uma caipirinha e outra, sapecamos um Almodóvar na roda de bate papo... Não me considero um especialista em Almodóvar, mas conheço vagamente o conjunto de sua obra, e consigo reconhecer os elementos que ele usa como referência estética e tal... Mas a galera começou a falar do filme "Tudo sobre minha mãe", logo este que eu ainda não tinha assistido. "Logo esse", pensei. E conforme o teor alcoólico ia temperando os entusiasmos, deixando solto as mãos e o verbo, todos naquela mesa falavam entusiasmadamente, enquanto eu estava calado, olhando pra cara deles, com um sorrisinho amarelo entredentes. Não dá uma sensação de agonia quando isso acontece? Mas como eu também não gosto de "ter aquela opinião formada sobre tudo", continuei bebendo aquela caipirinha, que por sinal, estava deliciosa.

Há alguns anos atrás, voltando a falar sobre aqueles filmes que a gente não pode deixar de ver antes de morrer, eu elaborei algo do tipo para um grande amigo meu. Caramba isso faz tempo. Vou explicar melhor o fato: Eu trabalhei durante durante dois anos e meio numa rede de cinemas de grande porte. As produções que lá eram exibidas faziam a festa do gosto médio de uma classe aburguesada da zona norte carioca (Tijuca), mas, de vez em quando, um sopro de inteligência pairava por aquele ambiente, e então eu era agraciado com um filme argentino como "Filho da Noiva" ou até mesmo o "Amarelo Manga" porradão no estômago do Cláudio Assis e que nunca que eu poderia imaginar que ficaria em cartaz lá onde eu trabalhava. Enfim, nada comentei sobre o meu propósito com ele. Desde então eu juntei todos os títulos que estiveram em cartaz por lá, e que valiam a pena dar uma olhada, e o presenteei. Lista organizada por ordem alfabética, formatada quase em moldes científicos. Não sei se ele deu preferência ao conteúdo ali indicado, se ele confiou no meu bom gosto, nem se essa lista ainda existe, mas se existir, será uma obra singela, deixada por mim para a posteridade... algo concreto que exigiu uma capacidade de esforço e concentração muito acima do comum. Mas convenhamos, exageros à parte, se não fosse a ajuda do catálogo de filmes que eram publicados semanalmente pela empresa e que eu tinha mania de colecionar, claro que essa lista nunca que ia existir...

Dia desses eu aluguei o filme do Almodóvar, mencionado por mim há alguns parágrafos atrás, e como sempre, me emocionei como um tolo...