A estréia, no Espaço SESC, do mais recente espetáculo da Cia. Ensaio Aberto, não foge à linha de atuação artística do grupo, que tem no engajamento político sua marca registrada. Aqui, o material utilizado pelo encenador Luis Fernando Lobo é um artigo pouco conhecido do filósofo alemão Karl Marx, publicado em 1846, que por sua vez, utilizou-se de fragmentos de memórias, publicadas pelo diretor dos arquivos da polícia francesa, Jacques Peuchet, também no século XIX, onde relatava casos de vítimas, em sua maioria, mulheres de origem burguesa, que resolveram se matar por motivos particularmente reconhecíveis àquele meio social: pressão familiar e da sociedade, autoridade paterna, dominação do sexo masculino sob o feminino e por aí vai.
A linguagem do espetáculo é completamente narrativa, preferindo o encenador trabalhar com o material bruto do texto de Marx, ou seja, o espectador assiste, ou melhor, ouve, através dos atores, o conteúdo do artigo escrito pelo pensador alemão. Em Sobre o suicídio, o texto é pronunciado de forma crua, sem que haja, no ato da narração, qualquer resquício de construção de personagem. Aliás, não há personagens mimeticamente elaborados e vividos em cena, que dialogam entre si como numa dramaturgia convencional. O que há, ali, é o texto, um grande e pesado bloco de palavras e suas diversas formas de enunciação.
O elenco formado por Fernanda Avellar, Françoise Berlanger, Tuca Moraes e Luis Fernando Lobo, ora intercalam as réplicas, ora dizem, todos ao mesmo tempo, as passagens extraídas do artigo de Marx, numa polifonia que põe, de igual para igual, a voz dos atores (uma atriz estrangeira integra o elenco), a trilha sonora de Felipe Radicetti, a iluminação rigorosa de Jeff Dubois que auxilia na criação de espaços e de imagens que se desprendem da narrativa, principalmente nos casos relatados em primeira pessoa, além das várias projeções em vídeo, utilizando documentários de razoável repercussão no debate social, elaborados por Batman Zavareze e Fábio Ghivelder. Todos estes dispositivos juntos, não só contribuem para preencher todo espaço da cena, como também perturbam, positivamente, a concentração da platéia-ouvinte. Todos estes signos, auxiliados pelos poucos adereços cênicos manipulados pelos atores, preenchem o palco. Encaro este ponto de vista como um interessante desafio para quem está no lugar do público, pois o espetáculo exige tanto um espectador atento quanto uma atenção redobrada ao que está sendo dito em cena, retirando a platéia do lugar confortável da pura contemplação. A encenação, neste caso, funciona como um verdadeiro embate entre o que é dito-lido, quem fala-lê e quem ouve.
A intermidialidade, tematizada na projeção das imagens, funciona como uma espécie de janela que se afasta brevemente do quadro social do século XIX e dos relatos das suicidas, narrados por Peuchet, mas que se relaciona na reflexão dos problemas contemporâneos, que ainda são encarados como tabu, como pudemos assistir na projeção do trecho em que acompanhamos mulheres humildes relatarem seus casos de aborto. Neste caso específico, o diálogo estabelecido se dá na identificação, nos dias de hoje, de casos que também deveriam ser tratados pela saúde publica, porém são negligenciados pelas autoridades, por questões tanto morais quanto religiosas - como o suicídio, detectado por Marx em seu artigo - evidenciando ainda mais os sintomas de uma sociedade doente e abandonada à própria sorte.
Elogios à parte, é necessário dizer que alguns atores, pelo menos no dia da estréia, ainda não tinham encontrado o tom certo de pronunciar o texto, incorrendo em visíveis erros de marcação e em exageros de vocalização, falando o texto de forma gritada, mesmo com a utilização do microfone. Acredito também que alguns minutos a menos seriam bem vindos para que a platéia pudesse encorpar melhor, tanto a denúncia contida nos escritos de Marx, quanto a proposta estética da companhia neste espetáculo, pois ficou nítido que o cansaço pairou sobre a platéia do SESC no dia da estréia. Mesmo assim, considerando que estas ressalvas possam ser verificadas no decorrer da temporada, considero um espetáculo sério, político e também, contrariando ao que muito foi dito, teatral.
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