28 de set. de 2008

Crítica - A crítica teatral e sua função nos novos tempos

Por Sebastião Milaré

Qual a função do crítico dramático hoje? Será ele ainda um pensador ou simples divulgador de teatro?


A crítica é inerente à produção da cultura dramática. Não se pode imaginar o desenvolvimento de um teatro nacional sem o respaldo de intelectuais conhecedores da arte, capacitados à análise e discussão do fenômeno estético. Sob esse ponto de vista, a crítica tem função analítica e organizadora das diferentes correntes de pensamento que incidem na produção dramática. Isso não se altera com a mudança do calendário e permanecerá valendo no século que se inicia.

O que me parece importante discutir é o espaço da crítica nas novas conjunturas e em face das tecnologias que transformam radicalmente os meios de comunicação. Por tradição, temos a imagem do crítico ligada a um periódico, à coluna de um diário ou semanário, e sua função confunde-se em certa medida à do jornalista: informa o leitor sobre a qualidade do espetáculo. Isto é verdadeiro... ou melhor, é uma meia verdade. O jornalista ao redigir a notícia deve ser objetivo, ater-se ao fato e não interpreta-lo; deve ser tão imparcial quanto possível. Já o crítico é também objetivo, mas interpreta o fato (no caso, a obra colocada em cena) e é apenas relativamente imparcial, já que a apreciação da obra cênica tem muito de subjetivo, representando antes de tudo um ponto de vista – o ponto de vista do crítico. Diferenças que separam nitidamente a função do crítico à do jornalista, embora nada impeça que uma pessoa exerça ambas as funções com muita competência.

O problema dessa imagem do crítico é que o afasta do criador cênico para aproximá-lo do leitor do periódico. Numa simplificação, apenas o leitor seria o interlocutor do crítico, dificilmente o artista. Isto leva à crença de que crítica desfavorável ao espetáculo determina o fracasso do mesmo; assim como crítica favorável engorda a platéia. Crença que, no Brasil, é sistematicamente negada pela realidade: muitos espetáculos francamente repudiados pela crítica tornam-se triunfos de bilheteria e outros, elogiados pela crítica, ficam com as salas vazias de espectadores. Então a crítica é uma inutilidade? Certamente, como inútil é a própria arte. E quanto mais gratuita for, quanto menos estiver “a serviço” do que quer que seja, mais próxima estará de trazer grandes benefícios à sociedade.

Já ouvi vários críticos – e dos bons – colocarem-se como “espectadores privilegiados”. Permito-me discordar deles. Na verdade, o bom crítico domina um instrumental teórico que pouco espectador possui, e tem o olho treinado para ver sutilezas, movimentos e gestos cênicos, conseguindo imediatamente relaciona-los à obra ou ao pensamento poético que os inspira ou que se pretende materializar cenicamente. Dessa relação é que nasce o ponto de vista crítico. Assim, o crítico é um especialista e não um “espectador privilegiado”. Vê o espetáculo como um pensamento transformado em imagens, sons, movimentos, luzes, e discute esse pensamento. Sua interlocução com o leitor do diário é positiva. Não qualquer leitor, certamente, mas aquele que tem algum interesse pela arte. A leitura constante de boas críticas ajudará esse leitor a educar a sensibilidade, a desenvolver capacidade analítica, habilitando-se à perfeita fruição do produto estético – deixa de ser mero “consumidor”.

Sendo pessoa capaz de ler e discutir o pensamento veiculado pela obra (ou o pensamento que é a obra), outro importante interlocutor do crítico é o próprio artista, o criador cênico. A relação entre esses personagens é sempre complicada, pois implica a imagem que cada um faz de si mesmo e do seu trabalho. Às vezes tal relação desanda em agressões. Mas, sobra, inevitavelmente, a reflexão expressa na crítica que, de uma maneira ou de outra, oferece algum subsídio ao criador. E esse fato exprime, no contexto do teatro atual, novos campos e novos espaços onde a atuação do crítico está muito mais próxima à do criador, estabelecendo novos modos de diálogo.

Nesses novos espaços, ainda não suficientemente explorados nem resolvidos, surgem duas figuras que nem sempre são encarnadas por críticos, mas cujas funções estão absolutamente vinculadas ao exercício crítico: a do dramaturg ou dramaturgista e a do programador. A primeira tem ligação orgânica com o trabalho criativo, na medida em que busca junto dos criadores cênicos estabelecer perspectivas para a interpretação da obra. A segunda, faz ponte entre a criação estética e o público, buscando captar a dinâmica da produção teatral e organizando sua mostra em determinados locais.

No Brasil, há pelo menos duas décadas, proliferam festivais ou mostras competitivas, em cidades do interior, alguns de âmbito nacional, onde críticos (embora nem sempre críticos) são contratados como membros de comissão julgadora, tendo que debater com os artistas e o público cada obra apresentada. Constitui um exercício estimulante da crítica imediata, direta, provocando um diálogo proveitoso tanto para o crítico quanto para os criadores, também para o público presente e, muitas vezes, participante do debate. Desse modo, vemos ampliarem-se os espaços da crítica, embora construídos caótica e irregularmente. Os periódicos, hoje, parecem ameaçados pela Internet. Mas seria um exagero estimar a “morte” da imprensa diária, como foi exagero estimar que o cinema mataria o teatro e, depois, que a televisão mataria o cinema. Mais legítimo seria louvar o aparecimento de um novo meio para veicular idéias. Surgem na rede sites noticiosos, abrigando links de crítica teatral. Porém, quase sempre, esses sites reproduzem no novo meio linguagens e critérios da imprensa diária, confinando a reflexão crítica a planos secundários. A Internet, no entanto, é um meio generoso, amplo, democrático, e poderá vir a ser importante espaço à reflexão crítica, com sites dirigidos ao público interessado na arte, sem restrições nem condicionamentos editoriais.

Creio que a função da crítica teatral neste novo século continua essencialmente a mesma, porém dinamizada e difundida por novos espaços. Justamente esses novos espaços é que devem ser avaliados, otimizados, de modo que a crítica possa readquirir seu sentido didático, provocador e criativo. A crítica teatral frente às novas tendências cênicas Ao longo do século 20 a encenação foi adquirindo autonomia, separando-se da literatura, da qual tradicionalmente era entendida como subproduto. As revoluções dos conceitos cênicos desde Antoine até Brecht, passando por Paul Fort, Gordon Craig, Stanislavsky, Meyerhold, Komisarjevsky, Artaud e tantos outros, abriram horizontes que foram exaustivamente explorados por criadores no mundo todo, depois da Segunda Guerra, incidindo em novos paradigmas, novas linguagens, conferindo à encenação peculiaridades que a tornam um tipo de expressão singular, único, provido de dinamismo próprio. Sem dúvida o texto dramático continua sendo um dos fundamentos do teatro, mas deixou de ser o fundamento. Por outro lado, encenadores geniais, que dominam códigos estabelecidos e os transgridem, revelam valores no texto dramático que o crítico e o ensaísta tradicionais não conseguiam vislumbrar. A liberdade de desconstruir e reconstruir, marca da encenação contemporânea, possibilita a exploração desses valores numa viagem para dentro da obra, examinada e vivenciada na prática cênica e não apenas com o instrumental teórico do ensaísta. São procedimentos e códigos novos que desvendam horizontes insuspeitados em peças de Shakespeare, por exemplo.

No Brasil, a obra de Nelson Rodrigues era depreciada, vista como comédia de costumes com fortes tonalidades pornográficas, até o encenador Antunes Filho desvendar suas potencialidades poéticas ao reunir quatro peças do autor no espetáculo Nelson Rodrigues, O Eterno Retorno, reafirmando a condição mítica dessa obra com Paraíso, Zona Norte. A técnica de Antunes Filho no trabalho com o texto representa tendência já consolidada no teatro brasileiro -- faz uma cirurgia na peça, buscando através da pesquisa e do estudo seus elementos essenciais, dispensando os dados acessórios, ilustrativos, os comentários paralelos, para trabalhar os aspectos nucleares do drama. Técnica que exige do encenador grande conhecimento da arte, pois não se trata de simplesmente “cortar” o texto, mas de revelar a poesia: elimina partes supérfluas para desvendar a estrutura poética. Outra tendência marcante do teatro brasileiro atual dispensa as formas arquitetônicas tradicionais e concretiza o drama em espaços inusitados. Há, nessa linha, o trabalho radical de Ricardo Karman, que leva o espectador para dentro de um túnel em construção, muito profundo, com a extensão de 800 metros, passando sob um rio; em outra encenação, utiliza aterro sanitário, teatro em ruínas, floresta e represa, conduzindo os espectadores a esses locais em ônibus, num trajeto de aproximadamente 140 quilômetros. Ou o trabalho de Antônio Araújo, que torna os próprios espaços protagonistas do drama. As três obras realizadas por Araújo nessa linha – Paraíso Perdido (em igreja), O Livro de Jó (em hospital) e Apocalipse 1,11 (num presídio) – são exemplos eloqüentes de diálogos da encenação com o espaço, estabelecendo novo conceito de ação dramática. Ponderável também a incidência de tentativas da fusão de teatro com dança, onde o diálogo da dramaturgia com a coreografia funde códigos das duas áreas criando nova linguagem. Com Domésticas, Renata Melo realiza um discurso inovador, atestando a viabilidade dessa idéia que reduz, tanto o texto dramático quanto o desenho coreográfico convencionais, a suportes da linguagem cênica. E assim o teatro se reinventa a cada passo, exigindo do crítico novas posturas, novas maneiras de se relacionar com a obra e nova ética.

Não faz mais sentido a crítica que se prende ao texto como um náufrago a um pedaço de madeira, passando rapidamente sobre as questões da encenação. E também não faz mais sentido o crítico que se mantém afastado do fazer teatral cotidiano, como se a relação direta com os criadores fosse conspurcar o seu trabalho. Não faz mais sentido fechar-se numa interpretação teórica do original e não admitir que possa haver diferentes leituras da obra, considerando “um erro” qualquer interpretação diferente da sua. O crítico contemporâneo tem que soltar as amarras, deixar-se conquistar pelo dinamismo do teatro, admitir a contradição como matéria-prima do pensamento dramático em sua materialização cênica. Evidentemente o texto continua sendo um grande referencial da criação cênica, mas interessam igualmente os processos criativos, os meios pelos quais o artista procura atualizar os velhos textos e, com eles, desvendar novos horizontes, novo entendimento do ser humano, da condição humana. Mas o próprio processo pode, muitas vezes, implicar a dramaturgia, dispensando o texto formal ou convencional. O crítico contemporâneo precisa aceitar os desafios desse teatro. Precisa dialogar com os criadores, informar-se dos processos. Só assim evitará o risco de confundir um dado novo com modismo e enaltecer modismos como inovações. O polêmico Antunes Filho desabafou certa vez, frente a confusão de conceitos de alguns críticos em comentários sobre montagens suas: “Não se pode ver os novos paradigmas com o olhar velho”. E essa é uma grande verdade.

MILARÉ, Sebastião. A crítica teatral e sua função nos novos tempos.http://www.antaprofana.com.br/materia_atual.asp?mat=295. 28/09/2008.

Foto: Cena de "O Livro de Jó", pelo Teatro da Vertigem, direção de Antônio Araújo.

Um comentário:

  1. Interessantíssimo o texto, Pedro, até porque vejo uma claríssima associação entre essa "dis-função" do crítico teatral com a do crítico literário. Similarmente, ficamos presos a colunas de jornal, apontando quais livros são bons para se ler ou não.
    A verdadeira crítica literária anda "fugindo" dos jornais (ou melhor, foi expulsa deles) e só mantêm relações com revistas universitárias, coisa especializada.
    Uma pena que soframos desse estigma...

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